Identidade e estilo na Rico Bracco
A marca surgiu
como homenagem ao avô, Henrique (por isso Rico) que trouxe um cão, quando da
última leva de imigrantes italianos – Bracco era seu cão de caça. Assim, Rico Bracco. A família de Fabrício
Gelain (que não se considera estilista, mas artesão) é uma constante em seu
trabalho, sua grande inspiração (tios, avós), que é menos visual, mais ligada à
memória e aos sentimentos que dela derivam. “Vejo as peças como auto-retrato”,
destaca. Em cada criação, há uma busca por suas origens (estritamente
relacionada às questões da imigração italiana, o trabalho, o escasso lazer, as
diferenças de gênero, afetos e desafetos, valores e dogmas, o ”sexismo”). São
propostas de reflexão, quase textos filosóficos do vestir.
Nova Treviso,
localidade no interior de Nova Roma do Sul, onde a família de Fabrício se
instalara e onde este passava os fins-de-semana, também está presente, em cada
criação, em cada conceito empregado. A avó era costureira e, embora dissesse
“Não mexe na máquina”, isso atraiu o neto (ou talvez mesmo por isso!). Gelain
foi menor aprendiz no Senai, concluiu curso de costura e modelagem. Depois, na
graduação, optou por Design de Moda. Ainda durante o curso, a convite,
ministrou aulas de alfaiataria para seis professores na Universidade de
Guadalajara (México). Assim que se graduou, inaugurou sua marca, inicialmente
fazendo roupas de festas sob medida.
Não
identificado com essa vertente e em busca de um estilo próprio (ligado ao
conhecer-se, ao tornar-se si mesmo), e sob a influência da estética japonesa,
foca em criações atemporais, mais puristas, de linhas simples, que vistam
vários corpos, respeitando suas diferenças. A valorização da singularidade é
evidente na produção da Rico Bracco:
liberdade de movimento, conforto, apuro no design (da concepção ao produto
final) são transmitidos em cada detalhe. O apuro do olhar e do fazer, ou seja,
o equilíbrio entre talento e técnica, que é tão caro a Fabrício, tornam suas
criações obras de arte. Em cada peça, há um preciosismo e o objetivo do
artesão, que é fugir da coisificação, atento mais ao fator simbólico da roupa
(como expressão, comunicação), é atingido pelo corte bem executado e o
acabamento impecável. Costuras quase imperceptíveis, cuja face usável da peça e
seu verso são muito semelhantes. O linho é a matéria-prima, com fibras mais
longas, teares com menos mão-de-obra, importado da China, da Bélgica e da
França (cuja qualidade é indiscutível). Nada é aleatório, tudo é fruto do
trabalho, seja ele manual, técnico ou intelectual, juntos, sempre!

REMANESCER
A coleção
2020, intitulada Remanescer lançada
em evento restrito a alguns convidados (devido à situação pandêmica), em 19 de
outubro de 2020, na Galeria Municipal de Arte Gerd Borheim, remete ao feminino
colonial. No lançamento, em que as roupas permaneceram suspensas, sempre
visíveis, enquanto uma performer “deu
vida” ao conceito, percebeu-se o primor pelo significante em detrimento ao
significado. O gesto da/na interpretação é original, logo individual.
A atmosfera do
evento era vermelha, porque visceral, contrastando com as peças fluidas, leves
e brancas (e a ligação conceitual com o trigo). O linho-seda e o linho-puro,
com ou sem bordados, contrastando com o pesado da foice, presente na performance/dança.

O artesão fala
de renascimento e repetição. De leveza, tão necessária aos nossos tempos
sombrios. Por isso, alfaiataria tradicional (o clássico) e desconstruída (o
novo). A performance, porque “pela
forma”, permite conteúdos diversos, obra aberta. Assim, o movimento da
bailarina pode remeter ao trigo, de início semente, dura, depois crescida,
estruturada, leve (movida pelo vento), fonte de/da vida (na tradição católica),
de alimento e do vestir. Pode remeter também à mulher, presa no mundo
masculino, com desejos de libertação. Um corpo endurecido (pelo sofrer?) rumo à
fluidez. Ainda que fluida, não abandona o trabalho, o embalo, o sorriso.
Retorna ao princípio: equilibrada, flutua... Afinal, a foice é só trabalho, ou
instrumento de artista? O trabalho que transmuta em arte.
TRANSMUTARE
A memória, tão
presente no estilo da Rico Bracco,
torna, retorna, materializa, simboliza, concretiza, representa. Porque é
constitutiva. A memória é a ligação do sujeito com o Outro, com a alteridade:
imagens estruturantes dizendo o que
somos, de onde viemos, o que fizemos com o que fizeram de nós. Por isso, são (e
ao mesmo tempo não são) retratos de acontecimentos. São o resultado de nossa
interpretação, mediada por sentimentos, sensações, percepções, racionalizações,
de fatos, marcas.
A Transmutare, nova coleção de Gelain, que
surge como esperança, diante do horror pandêmico (a Remanescer era resistência, a Transmutare
é memorial, é renascimento, buscar o que de bom havia antes), mas sob um olhar
que nunca será o mesmo, porque aterrorizado, traumatizado. Segundo o artesão, é “renascer das cinzas”. Cinza
aqui também é memória: de onde viemos, para onde iremos... remete ao trabalho,
do avô, uma grande referência, desde a concepção da marca. Tabaco que também
faz parte da própria vida de Gelain, de uma oralidade frente à ansiedade. A
transmutação é conceito-chave não apenas dessa coleção, mas do trabalho da Rico Bracco: da pureza do linho nasce a
obra de arte, impregnada de um conhecer-se, de um tornar-se si mesmo, que
valoriza o passado, as origens, mas não deixa de contemporaneizá-los.
Transmutação por ressignificação, através de um trabalho crítico relativo ao
patriarcado, à submissão das mulheres, sofridas, calejadas. Por isso, ora peças
sem gênero, ou melhor, que abarca todos os gêneros, ora peças que valorizam as
especificidades daqueles que as vestem: cobrir e descobrir, modelagens amplas,
limpas, sem rebuscamentos (ou com eles, porque não?).
A Transmutare virá a público no próximo EcoFashion, em Milão. A Rico Bracco será uma das oito marcas que
representarão o Brasil no evento, depois de passar pelo crivo de duas edições
nacionais, cuja exigência para participação já é alta: há critérios bem
estabelecidos em sustentabilidade. Na última edição brasileira do evento, participaram
68 marcas.
ATELIER/MAISON
Conhecemos
a Rico Bracco em julho de 2020 em
espaço que Gelain dividia com a prima (consultora de estilo), uma sala
comercial na Dr. Montaury. O ateliê era pequeno e não condizia com o potencial
do artesão.
Uma
alegria saber da mudança para a casa na Guia Lopes, e muito mais ao conhecê-la.
O atual ateliê de Rico Bracco é
amplo, arejado, com diferentes ambientes e lembra as grandes maisons europeias. Muito coerente com o
trabalho e a proposta de Gelain.
Os
detalhes – sempre! – são significantes. Não apenas nas roupas produzidas pela
marca. A recepção apresenta icônicos chapéus de palha e um show room. Em uma sala anexa, um espaço de convivência, com
cadeiras idealizadas pelo artesão e uma mesa onde Gelain, carinhosamente,
oferece chá para o visitante/cliente, servido nas cerâmicas, também criadas em
parceria por ele.
Há
ainda a sala de provas, a sala de tingimento, e até o banheiro foi pensado de
modo a congregar os conceitos/ideias da marca. No andar superior, um sótão que
congrega o escritório do artesão e o ateliê propriamente dito. A casa, como as maisons, tem tudo, inclusive, para
abrigar desfiles, lançamentos de novas coleções.
TRADIÇÃO E INOVAÇÃO
Não
podíamos deixar de retornar à Rico Bracco
depois de saber de sua icônica criação e produção do vestido da então candidata
à rainha da Festa da Uva 2022, Bruna Mallmann, eleita princesa em evento
recente (comentado por nós na editoria Eventos).
Nossa surpresa
maior é que o vestido foi criticado por pesquisadora de vestimenta, acusado de
ignorar a história dos vestidos das soberanas, a tradição. Quanto equívoco!
Tradição não pode ser algo estanque, “mumuficado” , ou incorre em contrariedade
às suas origens, como dizia Husserl: “a tradição é o esquecimento das origens”(sic).
Qual o propósito da Festa da Uva, e especificamente do vestido referido? A
mulher, a colona, o cerne referencial das soberanas (e de todas as candidatas,
desde sempre!) não vestia brilho, saias de armação, mangas bufantes, cetim e lamê.
A tradição não
pode afirmar-se numa destemporização, mantendo-se sem um auto-questionar-se
constante, cerne da busca por um estilo
singularizado. Concordamos com Vitor Ramil: “para estar viva, a tradição
deve estrar justificada na expressão contemporânea – e ela estará justificada
mesmo que o novo represente uma ruptura”(sic). A tradição não deve ser um peso
a ser suportado, nem um amontoado de fórmulas a ser repetida. O compositor
destaca que “assumir um personagem para afirmar a própria identidade é, na
verdade, fragiliza-la” (sic). Orientar a tradição, desapropriando o popular é
uma violência.
A criação de
Gelain é o oposto disso. Valoriza o passado,
a mulher imigrante, a mulher colona, visibiliza suas dores, suas marcas,
suas verdades. Retoma suas roupas originais, seu vestir/desvestir. E o mais
importante, funda-se no passado, mas o atualiza, para o contemporâneo (suas
preocupações, seus temas, o empoderamento do feminino) e para a realidade
daquela que o veste, não incorrendo em estereotipia e personagem (com a muito
vem se fazendo com os vestidos das candidatas).
Vestido de Rico Bracco foi produzido com
tecidos biodegradáveis, tingidos com
pinhão (araucária como a árvore nativa da região!). Complementam a criação, o
trabalho da bordadeira local Catelini Padilha, a tela de seda-linho da Casulo
Feliz e o macramê de Ana Casara. O abotoamento orgânico, com detalhes da vida
de Bruna, as pregas, os bordados, o design
(que lembra também o desnudamento), tudo está em harmonia, em equilíbrio
criativo.
A inovação,
sem ignorar a tradição (as origens, incluindo a vestimenta, por exemplo, de
Adélia Eberle, a primeira rainha da Festa) é a chave para práticas alinhadas ao
contemporâneo. Gelain o fez brilhantemente nesta criação e a Festa da Uva
acertaria – e muito! – se solicitasse ao artesão a idealização e a produção dos
vestidos oficiais das soberanas.
GUILHERME REOLON DE OLIVEIRA
MTb 15.241
VERA MARTA REOLON
MTb 16.069
Fotos by@GuiReOli
Fotos de Bruna fornecidos pelo Designer de Moda