Parece
que reverberaram no amadurecimento do grupo nossa avaliação de “Salão Grená”,
primeira montagem da Cia Municipal de Dança de Porto Alegre. Principalmente em
dois quesitos: a busca de uma identidade grupal e a valorização dos intérpretes
desse grupo tão heterogêneo, dando espaço à criação e/ou participação
individuais, porém não isoladas. O que, em “Salão Grená”, parecia um mix
homogeneizante meio caótico de experiências, com música em reprise, em “Adágio”
– reunião de quatro novas criações da Cia – tornou-se Obra de um grupo afinado.
Adágio
é um conjunto de quatro coreografias que, em princípio, devem ser lidas
individualmente, dadas as suas particularidades, bailarinos envolvidos, coreógrafos
diferenciados e poéticas singulares. No entanto, a Cia pela apresentação
conjunta – em grupos de três coreografias –, o que prejudicou a experiência
estética – e mesmo avaliativa – de cada uma. Vendo-as, em conjunto, por
exemplo, parece que mereciam um melhor cuidado no que tange às trilhas sonoras.
E, também em conjunto, os movimentos que teriam destaque, em sua unicidade,
perdem-se numa sensação de deja vu.
Não
só a avaliação, mas as outras etapas de uma crítica – descrição, interpretação
e contextualização – acabam prejudicadas por essa união de coreografias. E o
cansaço também acontece – não só do público, mas dos próprios bailarinos.
Falemos
de três – das quatro – coreografias. Em “Narciso”, o mito grego ganha forma de
maneira a contemplar a que parece ser a patologia dos tempos atuais: o
narcisismo. Tão necessário para a constituição de nossa identidade, o
narcisismo precisa superado como individualismo egocêntrico (narcisismo
primário, em psicanálise), transformando-se em narcisismo secundário,
imprescindível para uma vida desejante. Mas, diante de tantas desconfianças e
medos, diante de tantas correrias e insensatos andares sem sentido, perdemo-nos
em jogos de espelhos, telas e digitalizações virtualizadas que incitam à
agressividade e à violência camuflada e uma inautenticidade frente à
alteridade. Ignorando o Outro, ignoramos a nós mesmos – já que nos constituímos
a partir de uma relação entre olhares e rostos – e nos perdemos em uma
monstruosidade, uma bestialidade auto e hetero-hostil (psicose?). Douglas Jung,
coreógrafo de “Narciso”, soube explorar este universo. Talvez o que faltou foi
um pouco mais de expressividade por parte de alguns bailarinos e tradução mais
precisa em movimento do som da batida eletrônica que uniformiza e ignora o
ritmo – Diferença -, bem escolhida, nesse sentido, para ilustrar a poética de
um Narciso pós-moderno. Figurino também condizente: roupas claras e escuras, em
contraste, com tecidos brilhantes (novamente os reflexos).
Aliás,
é no quesito tradução música/movimento que encontramos o ponto alto de “Água
Viva”, coreografia de Eva Schul. A celebração da vida, com seus percalços, suas
artimanhas, suas pedras, seus caminhos, suas ondulações, encontros e
desencontros, baseada em livro homônimo de Clarice Lispector, é o mote da
montagem. A escolha da trilha, que destaca o violino como instrumental, logrou
bons frutos, afinal, não é ele, o violino, que parece expor desde a imobilidade
da tristeza aguda até o fluir de uma liberdade – ou a consciência de sua impossibilidade
– grave? Cabe destacar, em “Água Viva”, o figurino (vestimentas semelhantes às
dos monges – a questão do desapego material) e a sincronia do grupo no
vai-e-vem do som deste instrumento, nos altos e baixos dos corpos dançantes –
ir e vir de braços e troncos, ora acompanhantes, ora separados.
Todavia,
a sincronia de corpos diacrônicos, diferentes, singulares e com talentos
individuais ganhou destaque em “Ilação”, coreografia de Driko Oliveira,
bailarino da Cia. Aliás, é nesta coreografia que a identidade do grupo
transparece: exatamente na união não uniformizada dos bailarinos com
experiências em diversas linguagens da dança. A matriz é dança urbana –
linguagem propícia para a união, nascida das batalhas entre grupos (gangues)
norte-americanos, violência sublimada em movimentos e ritmo marcado. Mas em
“Ilação” estão presentes também passos de sapateado, ballet clássico, dança moderna e contemporânea. A Cia está ali –
Presente e em Sentido –, também porque, provavelmente, o coreógrafo soube
ouvir, ver, perceber o que o grupo é (como grupo e como indivíduos) e, talvez,
o que o grupo quer ser (como Cia). Sem conclusões, em desenvolvimento.
Mais
alguns pontos quanto à iluminação e ao cenário. Embora se perceba que estes
elementos foram pensados, ainda permanecem algo deficitários. Aqui houve uma
“regressão” em relação a “Salão Grená”. Em todas as montagens, faltou um
cuidado maior nesses quesitos. São poucos os grupos (talvez por falta de verba
ou de pessoal) que lembram que uma boa iluminação (não só alternância de cores,
mas o uso de claros e escuros, destaques ou não) e um cenário bem construído
(às vezes com elementos suspensos – para melhor uso do espaço) são
chaves-mestras para um bom espetáculo. Fica para a próxima. Ah, e para uma
melhor apreciação, cabe destacar: coreografias apresentadas sozinhas, uma por
sessão, seria uma boa pedida.
GUILHERME REOLON DE OLIVEIRA
Mtb 15.241
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